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O trafulha.



Já o conhecia de outras feiras – Vandoma, Passarinhos…- e de outras ocasiões burlescas e comoventes. O Sidério era hábil e cínico.
Assim que o ajuntamento o encobrisse, aparecia para o seu laminoso show: o povo calcava-se. A feira do Cerco arrebanhava sempre muita gente. Ele morava ali ao lado, no Lagarteiro, e conhecia bem o terreno que pisava.
Duas caixas de madeira, vazias de frutas, eram tudo o que precisava para montar o negócio. Ou até uma caixa de sapatos já vendidos.
Três caixinhas e uma bola criavam a fantasia, e a ilusão, de qualquer um poder acertar em qual embalagem estava a redondinha.
Por trás, a tenda dos presuntos e salpicões, comparsa estratégico do “mágico”: quando a polícia aparecia, ele abandonava os apetrechos e escondia subtilmente o dinheiro no meio dos fumados e enchidos. O casal charcuteiro mantinha-se imperturbável, como se nada fosse com eles. O Manel só tinha olhos para aquele pedaço de mulher, da sua mulher: atrevida como sempre, fogosa nos argumentos – qualquer um se aproximava da carne. O negocia florescia.
“Ah Marta, Marta, um dia trago a lua até ti!”
Na refrega, e sem saber quanto escondeu, o “mãozinhas” ficava feliz com metade do que guardou.
Naquele dia, a cena repetiu-se umas dez vezes. Quando o sol se punha, levando com ele os mais resistentes feirantes, o Sidério fazia as pazes com os agentes de serviços e presenteava-os com um ou dois salpicões, ou até um presunto para o sargento.
Na faina da desmancha da feira, a Marta argumentava, convincentemente, para aproveitar a boleia do Sidério, enquanto o Manuel encaixotava tudo e partia mais tarde.
Eram os filhos – pequenos, coitados – que convenciam o Manuel da responsabilidade e honradez da mulher.
O trânsito, as obras, a operação stop, etc., sempre foram boas razões para a hora tardia a que ela chegava. E chegava sempre com mais uma linda peça em ouro, que escondia até que o Manuel não se surpreendesse com a joia.
Enquanto desmontava a tenda, tantas vezes o Manuel ouvia o desesperado ourives feirante com a mesma revolta:
- Lá me roubaram mais uma vez!

Fernando Morgado

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