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A vida mede-se em marés.



Tanta gente à volta de um corpo inerte. Amélia não tinha espaço para saber o que se passava. Largou-se em lágrimas mudas ao espreitar aquelas “meias” e os sapatos: era o “Zeca dos Pelames”– a tuberculose levou-o.
Na Rua das Flores, todos a conheciam mas poucos sabiam da sua vida. O cabelo preso numa mola, a saia coberta por uma bata já com semanas de uso, os chinelos tão descambados como os pés: Amélia era a sobra dos tempos “melhores” que a vida lhe tinha dado enquanto o seu “Tono Caíco” foi vivo.
Levou-o a maré.
A Melinha era pau para toda a obra, limpezas e recados, para qualquer amiga(o) no quarteirão “Mouzinho – S.Bento – Flores – S. Domingos”. Era, por assim dizer, a melhor ”estoriadora” daqueles sítios.
Morava onde sempre morou, e nasceu: Escadas da Vitória, antigamente paraíso de ratos e lixo, hoje roteiro turístico da “judiaria”.
A alegria levou-a o Tono; a ele levou-o a maré.
Conhecia como ninguém as andanças daquelas velhas, e sujas, ruas da sua meninice: hoje, do seu viver.
Os armazéns de “tecidos e atoalhados” eram, agora, cadáveres do apogeu que a rua já tivera; espelho fiel da diferença entre “grandes lugares” e “grandes superfícies” – Amélia indiferente à t-shirt que a cobria: “I love Benidorm”.
Os ourives, outrora donos daquela rua (séculos), hoje substituídos por indianos e nepaleses: os “recuerdos” do Porto, “made in china”.
As flores, muitas flores, lindas e de todas as espécies – varanda a varanda em despique de beleza – eram a razão daquele topónimo. Melinha suspendia-se a olhá-las, agora com os olhos marejados.
Uma ou outra gorjeta, alguma roupa já usada, até “sobras” de almoços e jantares que as suas “amigas” lhe davam – ela aproveitava.
A saúde levou-a a miséria; os sorrisos não se entendem com as rugas; os humores levou-os o Tono: a ele levou-o a maré.
Nem filhas nem netos, a vida não lhe deu essas “prendas”: uma ablação prematura roubou-lhe o sonho. Gostava tanto de crianças – gosta de beijinhos – e a canalhada gostava dela. Alguns foram salvos do tabefe materno pelas suas mentiras doces: “Foi comigo à Ribeira, coitado.”…
Nem sempre retornava a casa pelo mesmo caminho: ou pelo Largo de S. Domingos; ou pela Travessa do Ferraz; ou,até, pela Rua dos Caldeireiros. Era absolutamente livre, infelizmente.
Não gostava de pensar no futuro: nada de bom lhe viria daí. Agradava-lhe o passado, os tempos do corpo roliço, peito firme, olhar malandro – os tempos em que, até ela, era uma flor na rua delas.
Quando “metia” pela Rua de Belmonte, lembrava-se do Sr. Lineu da “Araújo & Sobrinho” quando ele lhe dava um calendário com a fotografia da Foz (há tantos anos que lá não ia), e uma “agenda”; não sabia bem para quê, mas gostava de a ter.
Não gostava de domingos e feriados, eram tristes: as ruas ficavam desertas. Os “passeios” levou-os a pobreza; os bailes no “Passarinhos da Ribeira” levou-os o Tono; o Tono levou-o a dança da maré.
Quando, pachorrenta, subia a Rua dos Caldeireiros, arranjava sempre uma moedinha para Nª. Sra. Da Silva (padroeira dos ferreiros) – pagava a Fé em prestações; não parava na montra do “Xavier”, os caixões e as próteses metiam-lhe medo; dava “cinco tostões de letra” à Nani, sua colega de escola e de vida, hoje terapeuta sexual prós “camones” – ainda!
Tinha respeito por aquele “putedo”:Malinha foi sempre “puta” de um só homem - o seu Tono, que a virgindade lhe levou; a gonorreia quase levava o Tono; o Tono levou-o a puta da maré.
Naquele Domingo, ela e o Tono foram até ao “Areinho”, do outro lado do rio, para picnicar o farnel e molhar os pés, ou “ferrar o galho” à socapa de uma sombra. O Tono do Caíco (caíque) ou o caíco do Tono, eram a mesma coisa; eles e o rio, alcoviteiros de vidas de dor.
Naquela travessia, o Tono trocou o remo pelos lábios da sua “patroa”; aquele remoinho, que ele tão bem conhecia,puxou-os para a desgraça. O Tono era um homem “a sério”: salvar a mulher, custasse o que custasse.
Custou-lhe a vida, que a maré levou.
Amélia nunca mais se descasou.

A polícia recolheu o cadáver do Zeca: do bolso cai-lhe uma fotografia, a fotografia que a Amélia nunca soube como lhe desapareceu.
Da Rua dos Pelames vê-se o morro da Vitória – Amélia ficou menos viva.
O Zeca e o Tono: as marés os levaram.

Fernando Morgado

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