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MOSAICOS DA MINHA VIDA 3
Aquela rusga e a lengalenga eram já tradição nas ruas de Miragaia.
O binho é um remédio,
Que aliBia e cura as mágoas…
Os miúdos em fila indiana, comandados pela etílica batuta do Mário Penca, lá seguiam, talvez mais pela bolacha que o maestro lhes dava do que pelos dotes corais que possuíam, pelo Largo da Praia até ao parque. Dai fletiam para a igreja, depois para a Rua de S. Pedro de Miragaia, Largo da Quinta e terminavam onde começavam, na Rua dos Armazéns à porta da loja dos meus pais.
O Mário biscatava uns serviços que lhe eram dados pelo Sr. José Artista ou pelo Sr. Álvaro Rodrigues ou pelo Manuel do Gelo, ou por outro qualquer dono das camionetas que, na época, se perfilavam perto da Alfândega à cata de transportar mercadorias importadas ou para exportação.
A Alfândega era um rebuliço de gente e de trabalho. Havia as vagonetas (falarei delas mais tarde), nas quais os miúdos brincavam e se aleixavam.
Mais tarde, tudo mudou. A autorização para que os camiões TIR viessem directamente carregar e descarregar à Alfândega foi meio caminho andado para a mudança deste negócio das camionetes de transporte. Os despachantes tomaram conta das casas e ajudaram a desertificar Miragaia. Os camionistas, homens de outras culturas, namoriscavam com algumas raparigas de cá e bebiam bebidas esquisitas. Nós guardávamos as sameiras das suas garrafas porque eram diferentes, eram melhores, e eram um trunfo para ganhar à sameirinha. Coisas lindas de um tempo (mau) tão bonito.
O Mário Penca – nunca soube a razão deste apelido – era fiel ao Zé Artista. Só em razão extrema ele aceitava outros biscates. Era um homem inteligente, educado, de bom trato, e com uma boa caligrafia e escrita. Esta virtude levava a que muita gente a ele recorresse sempre que tinha que escrever uma carta para a Caixa de Previdência, para a Câmara, para o Tribunal, para tudo o que fosse importante. O Mário escrevia muito bem! A seu modo, e no seu jeito de bom-serás, ele era um subversivo revolucionário.
O problema era o álcool. Terminava os dias entretido entre os negos e as malhas, sem nunca criar qualquer conflito com quem quer que fosse. Quando o álcool o vencia, antes que ele vencesse às malhas ou à moedinha, tomava a batuta e mudava-se para a rusga.
- Ó Noeminha, dê-me um quarto de bolachas (250g).
A minha mãe punha as bolachas num cartucho de mata-borrão e, tantas vezes, ficava para ela a despesa da oferta.
A canalha em fila, cada um com a sua bolacha Maria, e começava a andança, sempre ritmada pelos mesmos acordes:
O binho é um remédio
Que alibia e cura as mágoas
Eu detesto com prazer
A Companhia das Águas
O binho é e há-de ser
O melhor remédio para esquecer.
Aiiiii… se um dia o binho acabar
Tanto nas farras como nas pipas
Eu dou cabo da puta da minha bida
Porque a água do rio dá-me cabo das tripas.
O binho é e há-de ser
O melhor remédio para esquecer.
O saudoso Mário Penca, homem de quem eu gostava muito, deixou-me ainda uma outra estória deliciosa. Dizia-me ele, num certo momento de lucidez, que tinha comprado uma televisão, mas só dava desenhos animados. Como assim? Sabes, o aparelho estava no lixo, eu tirei tudo de dentro e aproveitei a caixa para lá meter o meu gato. Ahahahah!!!! Agora, quando acordo, lá está ele a entreter-me com as suas brincadeiras.
Grande Mário, tanta gente de Miragaia se lembrará de ti. Sei, e quero, que me rectifiquem quanto ao teu apelido, na estória do Zé Artista ou do Manel do Gelo, e mesmo no que diz respeito à rusga: quero crer que alguns dos meninos da rusga, hoje homens já com netos, se lembrarão do maestro das bolachas.
Por fim, e porque me apetece; Mário, onde quer que estejas fica com o meu abraço!
Fernando Morgado
 
 

 


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