MOSAICOS DA MINHA VIDA - 4

O IÓ-IÓ.

Quando recordo a minha infância e adolescência, até mesmo a minha juventude, não posso esquecer esta figura típica de Miragaia.
O Sr. António, vulgo IÓ-IÓ como todos o conheciam, era um homem só e solitário; não era muito sociável – com poucas razões para isso -, nada dado a conversas ou amizades. Não lhe conheci profissão ou família, idade ou origens. Era um ser bizarro; no aspecto, no semblante, no parco discurso, nos comportamentos, até mesmo na forma como não se dava a conhecer. Penso que, na época, seriam raras as pessoas que sabiam dele mais do que ele deixava saber.

Vivia na Rua do Cidral de Baixo, paredes meias com as escadas que liga à Rua dos Armazéns, para onde dava a única janela que o cubículo do Sr. António tinha para o exterior. Percebe-se o (des)conforto que esta casa lhe dava: saia de casa aos primeiros sinais de claridade e logo se dirigia ao posto de abastecimento mais próximo – durante muitos anos, a loja dos meus pais.

O mata-bicho era um copo de bagaço e um pão ainda quente, acabado de chegar. Por ali ficava, sentado na sua solidão, rumorejando pedaços de palavras que só ele ouvia completas. Mais que o educado “bom dia” a toda a gente que o cumprimentava, pouco mais era audível e entendível. Por ali ficava umas horas, até que a alma do seu relógio invisível o despertasse para pequenos passeios pelas ruas mais próximas, em procissão rigorosa por todas as “capelinhas” que os seus passos já conheciam.
Ao fim da manhã, se tanto, já o seu corpo era um harmónio de movimentos bem ao jeito do seu apelido: IÓ-IÓ.

Desaparecia por umas horas, escondido nas paredes do seu quarto, para reaparecer mais ao fim da tardinha, menos oscilante mas determinado a resgatar os negos (*) que ainda lhe faltavam para a normalidade do seu dia-a-dia. Era, então, em estado de profunda embriaguez que soletrava com as mãos as paredes que o conduziam até ao seu leito.

O Sr. António, como (por respeito) me apetece chamar-lhe, não era conflituoso ou malcriado, não se dava a intrigas ou confusões: era, por isso, um homem vulnerável à paródia dos outros para com ele. Paródia e malvadez (sim, por vezes era isso que acontecia), gozo e indignidade, joguete e espantalho. Enfim! Não me isento totalmente destas palhaçadas.
Ficava sempre a dúvida de se saber se ele gostava das patifarias que lhe faziam (dizia-se isso), ou se as patifarias afundavam ainda mais a sua hipotética autoestima e valor.

Lembro, a seu propósito, o tempo longo em que os meus pais tinham uma loja que seria das primeiras a abrir, ainda madrugada, na Rua dos Armazéns. Enquanto a minha mãe ia ao mercado de Gaia para trazer os legumes frescos que vendia na loja (vestia a pele de carrejona), e o meu pai ia a outro mercado buscar outros aviamentos, eu ou qualquer outro dos meus irmãos assumíamos a responsabilidade de abrir a loja e servir os primeiros clientes da manhã. O Sr. António era o primeiro. Nós não vivíamos a miséria de Miragaia, mas trabalhava-se muito na nossa casa: os meus pais foram uns heróis!
Lembro, também, as muitas vezes que a minha mãe lhe oferecia uma sopinha: tantas vezes ele aceitava como outras tantas ele rejeitava respondendo “Ó Noéminha, você quer-me matar?” O vinho, só o vinho, já lhe bastava.

Naquele tempo, quem não o conhecia?

Não lhe conheci ódios; dele e para com ele. Persenti-lhe, muitas vezes, o gosto em estar com as pessoas, ainda que gozando dele.

Não me lembro de gente importante na sociedade civil e civilizada daquela época, mas do IÓ-IÓ nunca me esquecerei.
Há, com toda a certeza, muitos outros conterrâneos com muitas outras estórias deste homem para contar. Até eu fico com tanta memória por contar. Voltarei ao IÓ-IÓ.

Este pequeno texto serve, pelo menos, para expressar a minha homenagem ao homem que estava sempre a tremer – o Sr. António.

Fernando Morgado

(*) Negos: pequeno copo de vinho, servido nas tascas do Porto, e que representava, em quantidade, metade do copo normal.

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