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UMA CARTA PARA TI





Olá meu amor.


Apetece-me falar contigo. Falarmos, ainda que tu só me ouças.
É bom!
Falarmos do que gostamos, do que queremos, do nosso futuro. Claro que vamos, também, falar do passado: é dele a origem dos nossos laços.
A minha tendinite, as tuas amigdalites, a minha cara de mau, os teus aborrecimentos: fica para depois, quando já não nos lembrarmos deles. Temos tanto em comum, tanto de nós, tanto de nos gostarmos unicamente.
Por ti, voltei à ginástica, fiz-me puericultor, li e reli contos que ninguém me contou; fui improvisador de muitas estórias exclusivas e inéditas: “Vô, conta-me outra vez a estória do gato que foi passear com a minhoca.”. Ó valha-me Deus!
Lembras-te daquele cão rafeiro, no Passeio Alegre? Não te dava sossego. Eras ainda tão criança, aprendiz de ciclista a quatro rodas. E a chupeta, que só largavas, e escondias, quando qualquer outra criança te atraia para uma brincadeira? Vaidades, vergonhas, orgulhos!
Os teus brinquedos à minha guarda; os meus olhos a guardarem-te. O teu Deus!
A fralda, o baby-grow, as calcinhas, a bata: mais tarde virão os jeans e as tatuagens. A capa, a gravata, o doutoramento, e o que mais irás conseguir; não sei se terei tempo para estar ao teu lado, do teu lado.
Presenteaste-me com os teus primeiros sons, monossílabos, letras soltas – expressões -, que eu, como castelos de areia, procurei sempre juntar para que partilhássemos as tuas primeiras palavras. Hoje, sabes como as palavras me dão prazer, como as tuas palavras me falam de amor, como as tuas expressões me prendem.
Fico vaidoso. Fico sempre vaidoso com aquilo que consegues. Gosto muito de ti!
Foi (é) tão bom ajudar-te a crescer, acrescentar dimensão ao teu mundo, e saborear o meu próprio crescimento, que em ti sinto continuar.
Está bem, eu sei, não me esqueço do trambolhão, da arranhadela, daquele popó, já sem uma roda, e que tanto adoravas; da tua Fifi – ó avô ela fala! -, que vimos esmagar-se na roda da tua sorte. Sim, saltaste a tempo e a Fifi caiu. Salvaste-te no meu grito. O teu Deus!
Deixaste-me tantas vezes atrapalhado quando rejeitavas qualquer colo, com medo que te substituíssem nos meus braços: tantos beijinhos me deste, como que marcando o terreno, e tantos te devolvi, como se em ti cativasse o meu caminho. Gosto tanto de ti!
O Panda e os Caricas, o macaco que comia as bananas, o tigre e o leão: ficava sempre extasiado com a tua destreza no domínio do ipad – o teu futuro na vertigem dos teus dedos e das tuas fantasias. Já nasceste com um chip estonteante! Quantas vezes pensei “Que faço eu? Ensino ou aprendo?”
Cresceste tanto, tão rápido, e sempre que o teu mundo pulava a tua beleza aumentava. Olhos babados, os meus.
Não me ri quando perdeste o teu melhor amigo, o Decas, por ele ter mudado de escola; mas rimo-nos hoje do teu choro convulsivo: banhavas a cara e a alma, na imperfeição do perder.
Que orgulho, que alegria! Conseguiste uma palavra difícil: “esquisito!”.
Foi mesmo esquisito que a tivesses pronunciado; um passarinho a mendigar-te o bolo de laranja! Não gostava: tu davas e ele desperdiçava.
As viagens, as nossas viagens: pequenas, as que fazíamos de elétrico ao longo do rio; grandes, na fantasia dos sonhos que as minhas estórias te provocavam. O teu Deus!
Eu, homem velho, no cárcere dos meus ciúmes: perdias-te com tantos amiguinhos, meninos e meninas, animais e bonecos, e eu ali à espera que te fartasses e quisesses vir embora. Nem o lanche te arrebatava.
Foi-se a fralda e a baba (os bonecos também quase), e vieram outros jogos, outros gostos, outros medos. Sim, não te rias, o medo não é mais que o Amor com pele de galinha.
Cresceste. Estás forte. A tua beleza é o único foco que eu vejo na plateia da minha vida. “Não digas a ninguém que eu te disse isto!”
Quero-te grande. No teu caminho bordarei, ainda, o meu amanhã: serei – sempre mais – o teu passado. O teu Deus!
Quero-te hoje, como esperança dos sonhos em que me embalo. Se nunca nos virmos, quero que saibas o quanto fomos felizes. Se nunca nos virmos, ficarei, mesmo assim, à espera da tua resposta a esta carta. Não te percas em palavras: dedica-me um sorriso. Só!
Estou ansioso: já podes nascer.
Não demores. Não adies a minha paz na alegria do teu sorriso. O meu Deus!
Um beijo,
Do teu avô.

Fernando Morgado

Comentários

  1. Tocou-me bem fundo ... sou avó...fica quase tudo dito com esta pequena palavra: "avó"!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Esta é uma carta a um neto que ainda não tenho. Com eles, a eternidade é mais possível.

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  4. Percebi que o "neto" ainda não nasceu ..."já podes nascer" (está lá)

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