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OS MEUS MOSAICOS – 32
 
 
A MINHA VARANDA, DE NOVO.
 
Vou até à varanda e por ali me deixo ficar por largos minutos.
Os meus olhos percorrem a paisagem; procuram primavera.
Deixo-me em pensamentos, em restolho de memória, e fico naquele balanço que me dá aquilo que vejo e aquilo que recordo: na mesma paisagem, nos mesmos sítios.
Desde logo, a Rua de Tomás Gonzaga, onde moro, antes sem casas devolutas e com a alma que lhe dava o bulício de tanta gente, a roupa a secar em cada janela ou varanda, o pequeno comércio, a ausência de carros estacionados, a miudagem em algazarra por tudo e por tudo e agora…
Hoje, esta rua exagera no sossego e no silêncio. Os naturais foram desaparecendo, pela morte ou pela vida, as casas ficaram desabitadas ou abandonadas, as crianças já não brincam nem gritam – não as há, e as poucas que há estão recolhidas em casa a desenvolver conteúdos informáticos ou multimédia para construção de futuros modernos.
Os meus olhos percorrem a rua; procuram vida.
Lá ao fundo, a Igreja à direita e o parque infantil à esquerda; havia, mas já não há. Que eu saiba (estarei errado?), Miragaia não tem espaços públicos para entretenimento e lazer das suas crianças e adolescentes. Este é um facto comum a outras freguesias (arranha-me o termo “união de freguesias”).
Hoje, é tema de discussão o número de agências da Caixa Geral de Depósitos que vão fechar em todo o país. Hoje, já não é discussão o número de equipamentos urbanos que se foram perdendo ao longo das últimas décadas. Dantes tínhamos o dinamismo da banca…hoje temos o amorfismo das freguesias.
Lá ao fundo, a igreja, à direita. Já houve um tempo em que via esta igreja à esquerda. No tempo em que a pastoral católica, aproveitando a agregação pela Fé, se empenhava numa liturgia profundamente social.
Ali fui baptizado, ali fiz a catequese, ali fiz a primeira e segunda comunhões. Ali cresci até ao casamento que, não por acaso, não foi ali mas foi em Miragaia. Ali me quiseram cordeiro, ali me desengraçou a pele.
Hoje, a igreja de Miragaia é comum ao declínio da Fé e da esperança, embora eu tenha ouvido referência elogiosas à pastoral do Padre Renato, actual prior.
Os meus olhos procuram a Fé; percorrem a dúvida.
O rio Douro está bonito. Vejo-o desde o Cais de Gaia até Lordelo e ressaltam-me diferentes texturas. A cor da água e a corrente não mudaram; as margens são as mesmas; as marés continuam como sempre, enchente, vazante e preia-mar – exclusivamente dependentes de factores astrológicos, cúmplices do namoro entre o Sol e a Lua.
Onde ontem só se viam as ossaturas decrépitas de muitas barcaças, outras ainda em uso efémero, alguns caíques e pequenos barcos de pesca à linha, hoje pululam outros géneros de embarcações.
Em movimento formigueiro, meia dúzia de “river sightseeing” cumprem a ilusão de mostrar o Porto nas suas margens. Por entre eles, emerge imponente o “Douro Cruiser” de grande calado e outras mordomias. Ao longe, sob o arco da Ponte da Arrábida, uma mão cheia de cascas de noz à vela – chamam-lhes optimist – serpenteiam entre eles o colorido das suas velas. Mais ao longe, na Afurada escondida numa curva de rio, estão em descanso, ou em manutenção, os barcos de pesca: parideiros de fartura ou fome, de alívio ou viuvez, mas sempre em faina dura, muito dura!
Os meus olhos percorrem o tempo: procuram remos.
Volto à varanda, de onde ainda não saí, para me sentir em viagem.
Aos meus olhos, o casario de Gaia – Vila Nova é mais acima – e a predominância das caves. Onde havia campos há casas, e onde havia casas há ruinas. Os néones do “port wine” mantêm-se e os grafitis vão tomando conta de espaços sem guardador. Alguns palácios e solares ganharam melhor estética com o advento do turismo massivo. Outros prédios são pasto da bolha hosteleira.
Não, não sou contra a dinâmica turística actual. Gosto que vejam aquilo que amo – o meu Porto -, mas já há conhecimento adquirido do que aconteceu em outras paragens deste planeta. Aprender o bom não faz mal a ninguém!
Repasto o olhar no Cais de Gaia, outrora cais de estiva e hoje um peculiar estaleiro de restaurantes falentes. Encerram uns e reabrem outros em sacrifício da qualidade.
Vejo o Convento de Corpus Christi, aonde levava algumas peças de linho para engomar, ou ia comprar snacks salgados e doces para uma qualquer confraternização. As raparigas de maus costumes, ali carceradas em tutoria, faziam estes trabalhos “voluntariamente”
Este Convento foi lugar de oração, passou a prisão e agora é órgão da câmara. É também uma montra de cultura. Ainda bem.
Os meus olhos percorrem as caves: procuram sabores.
Os barcos continuam em labor, o sol já se está a por, e eu continuo na varanda. Não consigo encurtar palavras para continuar a descrever o que vejo, o que penso, o que sinto. As gaivotas, sempre no meu horizonte em qualquer olhar meu, fazem-me companhia e testemunham a minha crónica. As pombas perfilam-se no telhado em frente, à espera que a ração lhes seja dada. E os gatos são os de sempre, como fotocópias dos que conheço desde que nasci. O Gugu, príncipe da casa, espera por mim no sofá; senhor do seu nariz, acha que a casa é dele, e é ele que me deixa habitá-la. Os gatos!
Voltarei aqui para vos falar da Alfândega e do Largo, de Monchique e das Sereias, dos telhados e das clarabóias, dos ratos e dos gatos, outra vez. Esta varanda é imensa.
Os meus olhos percorrem as casas: procuram afectos!
 
Fernando Morgado

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